Nas palavras do diretor: "Meus diários em filme de 1970 a 1999. O filme cobre meu casamento, o nascimento dos meus filhos, seu crescimento. Imagens da vida cotidiana, fragmentos de felicidade e beleza, viagens para Itália, França, Espanha, Áustria. A passagem das estações em Nova York, a vida em casa, a natureza, a busca eterna por momentos de beleza e celebração da vida - amizades, sentimentos, breve momentos de felicidade, beleza. Nada de extraordinário, nada de especial, coisas que todos vivemos ao longo de nossas vidas. "
DADOS DO ARQUIVO
Diretor: Jonas Mekas
Áudio: Inglês
Legendas: Português
Duração: 288 min
Qualidade: DVDRip
CRITICA
Ele se chama As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty, de Jonas Mekas. Mekas já garantiu o seu lugar na história do cinema com um filme absolutamente genial como Walden: Diaries, Notes & Sketches, de 1969, coletando imagens realizadas nos cinco anos anteriores. A enorme grandeza de Mekas é entender que o cinema possa ser não apenas um diário, mas essencialmente um esboço. Enquanto o cinema clássico norte-americano busca os tempos fortes, as ações determinadas, e realiza inúmeros takes até encontrar o “take perfeito”, a “ação funcional”, Mekas revira pelo avesso a forma como um realizador oferece imagens para o espectador. Intitulando seu filme-diário como “notas e esboços”, Mekas aponta para o caráter de incompletude, mas não como um “processo por vir”, ou como mera etapa para alcançar afinal uma “obra acabada”. Ao contrário, a grandeza de seu cinema é apontar para a impossibilidade de se chegar ao fim, de se terminar um processo. O que aproxima o processo de realização do próprio ato de viver, permeado de imperfeições, rasuras e garranchos. Pois são exatamente essas imperfeições que garantem à vida sua beleza, mas uma beleza essencialmente transidia.
Isto está ainda mais explícito em As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty. Enquanto Walden era um grande (leve) tour de force para estabelecer um estilo (um modo de ver o mundo a partir do cinema), em GLIMPSES (como vou carinhosamente intitular o filme daqui em diante), finalizado 30 anos depois, Mekas pôde consolidar essa forma de ser, como um filme de maturidade. Digo isso porque vejo Glimpses, de uma certa forma, como uma continuação de Walden, não só por seguir e aprofundar a idéia do filme-diário e das relações entre o cinema e a vida, mas pelo próprio fato de que o material compilado nesse filme abrange o período de 1970-2000, exatamente o período pós-Walden. A ambição do filme pode ser vista na duração: enquanto Walden cobre um período de 5 anos (1964-69), Glimpses abrange trinta. Além disso, é o mais longo filme de Mekas, com 4 horas e 48 minutos de duração.
Glimpses já começa com uma voz-over do próprio Mekas que expõe sua metodologia de montagem. Que trechos selecionar? Como organizar esses trinta anos a partir da montagem? Daí que Mekas oferece uma linda resposta: diante de um armário lotado de “rolinhos”, Mekas desiste de organizá-los em ordem cronológica, ou por “assuntos agrupados”, estabelecendo relações, composições, diálogos programados, como típico exercício de montagem. Simplesmente o realizador vai pegando os rolinhos por acaso (“by chance”), e montando as imagens a partir dessa revisão de cada rolinho, escolhidos por um critério aleatório. A beleza disso é que não se trata de um “dispositivo” ou coisa do tipo, mas simplesmente aponta para uma consciência da impossibilidade de organizar esses registros de uma maneira sistêmica, totalizante. É como se Mekas tivesse cansado de encontrar “um sentido” na vida, mas simplesmente tenha se concentrado em observá-la passar por ele (não passar diante dele, mas por dentro dele), e que ocasionalmente ele tenha se surpreendido (encantado) com breves momentos de beleza. É nessa fugacidade da beleza, nessa transitoriedade que reside o encanto da vida, ou ainda, a importância do cinema, nessa tentativa quase heróica de tentar registrar o inefável, de tentar congelar um momento de beleza, mesmo sabendo que esse breve instante está prestes a se perder. Enquanto o observamos, vivemos.
Walden foi recebido à época com um certo desdém. Hoje, quarenta anos após sua primeira exibição, parece que começamos a ter a dimensão do que essa obra representa, em termos de uma reavaliação das teorias realistas de cinema, e especialmente do papel do documentário. Num espaço estranho (frágil, delicado, robusto) entre o documentário, a ficção e o ensaio experimental, Walden foi mal compreendido em sua época, rotulado como “filme experimental”, dada a participação de Mekas no cenário alternativo dos filmes vanguardistas norte-americanos nos anos sessenta. Mas por outro lado foi o próprio Mekas que valorizou (defendeu) documentários criativos como os dos Irmãos Mayles.
Walden e Glimpses são dois documentários, e é fundamental que possamos inserir o nome de Mekas nas tradicionais “histórias do documentário”. No entanto, a própria idéia de documentar, registrar, se complexifica. Mekas documenta mas não se interessa propriamente pelo fato, é como se ele não se interessasse pelos fatos em si, pelas imagens em si, mas o que se desperta a partir deles. Ao mesmo tempo os fatos e as imagens são tudo o que se tem. Ainda, não se trata mais de documentar um acontecimento, ou de ficcionalizar uma narrativa, mas ambos se confundem. Viver é narrar a própria vida.
Vendo os filmes de Mekas, filmes geniais como os de Zhang-Ke ou até mesmo os de Pedro Costa parecem brincadeiras infantis, experimentos ingênuos na forma como articulam a ficção e o documentário, em como procuram inscrever o “real” no cinema, a partir de associações ou relações definidas, a partir de categorias prévias, ou ainda como um espaço geográfico estará inscrito no filme de ficção. Nos filmes-diário de Mekas, nenhuma dessas categorias faz mais sentido. Sua proposta de cinema é de outra natureza: as relações entre a ficção e o documentário (ou, melhor dizendo, entre a vida e o cinema) são muito mais orgânicas e intensas. É como se enquanto os outros realizadores ainda estão presos à estrutura griffithiana ou à imagem neo-realista (ainda que as revirando pelo avesso), Mekas fosse dialogar com Lumiére.
Para terminar, GLIMPSES é o melhor filme da nova década porque apenas hoje (nesta nova década) é possível enxergar onde daria aquela trilha que o autor desbravou lá no fim dos anos sessenta. Anos sessenta que por sua vez também é uma espécie de “annus mirabilis” dentro do século passado. Walden é uma ilha dentro do cinema dos anos sessenta, cujos caminhos só podem ser vistos hoje, nesta nova década, em que reina uma extrema individualização dos modos de consumo e de produção da imagem, em que proliferam no youtube miríades de auto-imagens, estimuladas pela facilidade do registro do digital. É maravilhosa a forma como Mekas se insere e se opõe a tudo isso: a radicalidade com que Mekas abraça esse projeto retomando o outro de trinta anos atrás e como, ao mesmo tempo, essa radicalidade é acompanhada com um tom idílico, levemente romântico, doce, esperançoso, vivo, dinâmico, inovador, pouco pretensioso. Acima de tudo, os filmes de Mekas são um ato diante da vida, uma posição diante do mundo. Não seria exagero afirmar que nunca antes o cinema alcançou tamanho grau de refinamento e beleza, garantindo ao filme um lugar privilegiado na história do cinema (se isso ainda fizer sentido).
Isto está ainda mais explícito em As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty. Enquanto Walden era um grande (leve) tour de force para estabelecer um estilo (um modo de ver o mundo a partir do cinema), em GLIMPSES (como vou carinhosamente intitular o filme daqui em diante), finalizado 30 anos depois, Mekas pôde consolidar essa forma de ser, como um filme de maturidade. Digo isso porque vejo Glimpses, de uma certa forma, como uma continuação de Walden, não só por seguir e aprofundar a idéia do filme-diário e das relações entre o cinema e a vida, mas pelo próprio fato de que o material compilado nesse filme abrange o período de 1970-2000, exatamente o período pós-Walden. A ambição do filme pode ser vista na duração: enquanto Walden cobre um período de 5 anos (1964-69), Glimpses abrange trinta. Além disso, é o mais longo filme de Mekas, com 4 horas e 48 minutos de duração.
Glimpses já começa com uma voz-over do próprio Mekas que expõe sua metodologia de montagem. Que trechos selecionar? Como organizar esses trinta anos a partir da montagem? Daí que Mekas oferece uma linda resposta: diante de um armário lotado de “rolinhos”, Mekas desiste de organizá-los em ordem cronológica, ou por “assuntos agrupados”, estabelecendo relações, composições, diálogos programados, como típico exercício de montagem. Simplesmente o realizador vai pegando os rolinhos por acaso (“by chance”), e montando as imagens a partir dessa revisão de cada rolinho, escolhidos por um critério aleatório. A beleza disso é que não se trata de um “dispositivo” ou coisa do tipo, mas simplesmente aponta para uma consciência da impossibilidade de organizar esses registros de uma maneira sistêmica, totalizante. É como se Mekas tivesse cansado de encontrar “um sentido” na vida, mas simplesmente tenha se concentrado em observá-la passar por ele (não passar diante dele, mas por dentro dele), e que ocasionalmente ele tenha se surpreendido (encantado) com breves momentos de beleza. É nessa fugacidade da beleza, nessa transitoriedade que reside o encanto da vida, ou ainda, a importância do cinema, nessa tentativa quase heróica de tentar registrar o inefável, de tentar congelar um momento de beleza, mesmo sabendo que esse breve instante está prestes a se perder. Enquanto o observamos, vivemos.
Walden foi recebido à época com um certo desdém. Hoje, quarenta anos após sua primeira exibição, parece que começamos a ter a dimensão do que essa obra representa, em termos de uma reavaliação das teorias realistas de cinema, e especialmente do papel do documentário. Num espaço estranho (frágil, delicado, robusto) entre o documentário, a ficção e o ensaio experimental, Walden foi mal compreendido em sua época, rotulado como “filme experimental”, dada a participação de Mekas no cenário alternativo dos filmes vanguardistas norte-americanos nos anos sessenta. Mas por outro lado foi o próprio Mekas que valorizou (defendeu) documentários criativos como os dos Irmãos Mayles.
Walden e Glimpses são dois documentários, e é fundamental que possamos inserir o nome de Mekas nas tradicionais “histórias do documentário”. No entanto, a própria idéia de documentar, registrar, se complexifica. Mekas documenta mas não se interessa propriamente pelo fato, é como se ele não se interessasse pelos fatos em si, pelas imagens em si, mas o que se desperta a partir deles. Ao mesmo tempo os fatos e as imagens são tudo o que se tem. Ainda, não se trata mais de documentar um acontecimento, ou de ficcionalizar uma narrativa, mas ambos se confundem. Viver é narrar a própria vida.
Vendo os filmes de Mekas, filmes geniais como os de Zhang-Ke ou até mesmo os de Pedro Costa parecem brincadeiras infantis, experimentos ingênuos na forma como articulam a ficção e o documentário, em como procuram inscrever o “real” no cinema, a partir de associações ou relações definidas, a partir de categorias prévias, ou ainda como um espaço geográfico estará inscrito no filme de ficção. Nos filmes-diário de Mekas, nenhuma dessas categorias faz mais sentido. Sua proposta de cinema é de outra natureza: as relações entre a ficção e o documentário (ou, melhor dizendo, entre a vida e o cinema) são muito mais orgânicas e intensas. É como se enquanto os outros realizadores ainda estão presos à estrutura griffithiana ou à imagem neo-realista (ainda que as revirando pelo avesso), Mekas fosse dialogar com Lumiére.
Para terminar, GLIMPSES é o melhor filme da nova década porque apenas hoje (nesta nova década) é possível enxergar onde daria aquela trilha que o autor desbravou lá no fim dos anos sessenta. Anos sessenta que por sua vez também é uma espécie de “annus mirabilis” dentro do século passado. Walden é uma ilha dentro do cinema dos anos sessenta, cujos caminhos só podem ser vistos hoje, nesta nova década, em que reina uma extrema individualização dos modos de consumo e de produção da imagem, em que proliferam no youtube miríades de auto-imagens, estimuladas pela facilidade do registro do digital. É maravilhosa a forma como Mekas se insere e se opõe a tudo isso: a radicalidade com que Mekas abraça esse projeto retomando o outro de trinta anos atrás e como, ao mesmo tempo, essa radicalidade é acompanhada com um tom idílico, levemente romântico, doce, esperançoso, vivo, dinâmico, inovador, pouco pretensioso. Acima de tudo, os filmes de Mekas são um ato diante da vida, uma posição diante do mundo. Não seria exagero afirmar que nunca antes o cinema alcançou tamanho grau de refinamento e beleza, garantindo ao filme um lugar privilegiado na história do cinema (se isso ainda fizer sentido).