IMAGEM COM BAIXA QUALIDADE EM VIRTUDE DA PRÓPRIA ORIGINAL
Categorias Curta-metragem / Sonoro /
Não ficção
Material original 16mm,
COR,
30min22seg
produção Ano: 1982
País: BR Cidade: Rio de Janeiro Estado: RJ Gênero
Documentário Direção Direção: Denitart, Hugo Fotografia Direção de fotografia: Howard, John Quem foi Arthur Bispo do Rosário? Podemos considerar como arte os objetos produzidos por ele, nos recônditos de um hospital psiquiátrico? Ou seriam esses objetos apenas produtos de sua loucura? Artista? Louco? No início dos anos 1980, a enigmática personalidade de Bispo do Rosário e sua instigante obra, foram reveladas ao mundo pelo do documentário: O prisioneiro da passagem1, dirigido pelo psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart(*), e pela exposição coletiva: À margem da vida, realizada no MAM/RJ, na qual a participação de Bispo foi alavancada, sobretudo, pelo referido documentário. O prisioneiro da passagem foi financiado pelo Ministério da Saúde, sendo o braço de uma pesquisa maior coordenada por Hugo Denizart, que desejava registrar e denunciar as condições de vida desumanas na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Embora a instituição fizesse parte do próprio Ministério, eram tempos de abertura política no país e diferentes grupos e movimentos sociais, que começavam a se fazer representar nas esferas de governo, estavam empenhados em produzir transformações. Para isso, era necessário denunciar o descaso a que aquelas pessoas ficaram submetidas durante tantos anos de internação psiquiátrica. A figura do personagem principal, Bispo do Rosário, em O prisioneiro da passagem, torna este filme mais poético e palatável do que Em nome da razão. Não abrindo mão de apontar a lógica excludente da psiquiatria em curso naquele momento, Denizart nos oferece também o universo fantástico e desconcertante de Bispo do Rosário, um contraponto em relação à dureza das cenas do manicômio e do depoimento de outro “interno”, que dotado de “razão” e clareza incontestáveis, reflete sobre o que está em jogo no mandato social de exclusão cumprido pelo hospício. Mas quantos artistas existiram, ou existem, nos depósitos humanos que foram, e que ainda são, os hospitais psiquiátricos durante toda a história da psiquiatria no Brasil? Os museus e as coleções de artes, instituídas a partir da produção artística de “pacientes psiquiátricos”, nos revelam que não foram poucos os artistas que estiveram do lado de trás das grades e muros dessas instituições totais2. Muitos trabalhos são produzidos nos hospícios e muito artistas estiveram lá internados, o que não quer dizer que tudo aquilo produzido a partir da experiência da loucura seja arte e nem que todo louco é artista ou vice-versa. Qual o limite entre a loucura e a arte? Só a partir da especificidade de cada obra e de cada artista tal resposta poderá ser vislumbrada3. A cena final do filme de Denizart focaliza, bem de perto, o detalhe da obra Navios de guerra, onde a palavra combate está bordada. Neste contexto, Bispo do Rosário é apresentado como sinônimo de resistência e luta contra lógica psiquiátrica. Mas só é possível pensar este artista como aquele que resiste se focarmos também, bem de perto, outros detalhes de sua obra, de sua vida e de seus depoimentos. Desde o filme de Denizart e das investidas do crítico Frederico Morais4, Bispo do Rosário deixou de ser apenas mais um dos internos da Colônia Juliano Moreira, onde viveu cerca de 35 anos ininterruptos, para se tornar um dos maiores artistas contemporâneos brasileiros. Seu surgimento no cenário das artes nacional e internacional provocou rupturas e interrogações neste campo, provocando novas discussões no âmbito de diversos saberes. Sobre a vida de Bispo do Rosário sabemos muito pouco. Em entrevistas concedidas à assistente social, Conceição Robaina, em 1988, e a Hugo Denizart, o artista não parecia estar interessado em revelar nada de preciso e pessoal sobre sua vida. Há sempre algo de enigmático em torno dele. Segundo consta em Hidalgo (1996) e Silva (1998), por exemplo, a data de nascimento de Bispo do Rosário é incerta, assim como sua filiação. Sua capacidade de transgredir e resistir à mortificação do hospício: tudo é um mistério. O crítico de artes Frederico Morais (1989) relata que o próprio Bispo do Rosário colocava para seus interlocutores, quando desejavam entrar em sua cela ou ateliê, uma charada: “qual a cor de minha aura?”. Segundo documentos oficiais da antiga Colônia Juliano Moreira, Bispo do Rosário é internado neste hospital em 1939, sob o diagnóstico de esquizofrenia-paranóide. De fato, sabemos, pelos depoimentos do próprio artista que ele acreditava ser Jesus Cristo, que tinha vindo à Terra para julgar os vivos e os mortos no dia do Juízo Final e que tinha a missão de reconstruir o mundo para apresentá-lo a Deus no dia deste julgamento. É sabido também que ele construiu, ao longo de mais de 50 anos de criação, interrompidos pela sua morte, uma coleção de obras de arte considerada pelo público e pela crítica especializada como fantástica, criativa e desconcertante. Ao todo são 802 trabalhos entre assemblagens, esculturas, objetos e bordados. Bispo do Rosário faleceu em 05 de julho de 1989, vítima de infarto do miocárdio e arteriosclerose. Encerra sua carreira na Colônia Juliano Moreira, para onde retornou definitivamente em 1964, segundo nos informam Morais (1989) e Hidalgo (1996). De sua vida no hospício sabemos um pouco mais. Sua sobrevivência aos horrores do manicômio parece ter dependido tanto de sua colaboração com aquele sistema punitivo – numa espécie de lógica do “salve-se quem puder”, uma vez que Bispo do Rosário era “xerife” em seu pavilhão, o que significa que ele ajudava na manutenção da ordem no hospício, usando inclusive de violência para tal – quanto, e sobretudo, de sua capacidade de criar sua própria existência diante das situações que a experiência da loucura lhe impunha. E tal criação envolveu vários direcionamentos: a certeza de que aquele lugar, no qual ele estava trancafiado, era o lugar destinado a “sua santidade”, como ele mesmo afirma no filme O prisioneiro da passagem; a construção de uma maneira de lidar com as vozes que o invadiam, dedicando-se aos bordados, objetos e assemblagens; o estabelecimento de uma posição privilegiada junto a técnicos, pacientes e familiares, o que lhe permitia obter a matéria-prima de que precisava. Sua vida era engendrada pela sua criação, que depois veio a ser legitimada como arte. Tudo foi feito para permitir o cumprimento de sua missão, viabilizando sua criação. As práticas ergoterapêuticas, da praxisterapia e da terapia ocupacional, tão usadas pela psiquiatria ao longo dos anos, não foram experimentadas por Bispo. Ele não frequentou cursos de artes ou oficinas terapêuticas, e também não tinha contato com outros artistas. Sua criação era algo da ordem da necessidade, era imperativa, tal como ele relata em O prisioneiro da passagem: “eu faço por que sou obrigado [pelas vozes], se não fosse obrigado não fazia nada disso não”. (Denizart, op. cit.). Embora Bispo não tivesse a intenção de ser artista ou de construir um conjunto de obra tão importante para a cultura brasileira, criou objetos e bordados que foram reconhecidos como arte anos mais tarde, quando as formulações conceituais do campo da estética avançaram, se expandido radicalmente. É simplória toda tentativa de pensar Bispo do Rosário e sua obra a partir de um único aspecto, seja por sua psicose, pela forma plástica de suas obras e as análises estéticas dela derivadas, ou por sua experiência acerca de 35 anos internado em um hospital psiquiátrico. Todos esses aspectos estão relacionados e devem ser articulados na análise de sua vida e obra. Não se trata, portanto, de negar a loucura de Bispo do Rosário como parte de sua vida, tampouco de utilizar a loucura para justificar sua obra, mas sim de marcar a potencialidade artística de Bispo do Rosário, considerando que sua loucura não conseguiu eclipsar sua arte, e que sua vida foi marcada pela experiência da criação. Há uma especificidade em Bispo do Rosário, defendida tanto por críticos de arte quanto por psicanalistas, que faculta aos primeiros argumentar a favor do status de obra de arte de sua produção e, aos segundos, refletir sobre a obra enquanto elemento de estabilização de sua psicose. Entretanto, percorrendo a bibliografia sobre Bispo do Rosário, composta por diversos tipos de documentos – artigos e outros textos acadêmicos, catálogos, ensaios, fotografias e documentos audiovisuais – não encontramos análises sobre sua especificidade baseada em uma determinada cena de O prisioneiro da passagem, que nos parece emblemática e que será aqui analisada. Tomando de empréstimo a expressão imagem em movimento, que nos reporta diretamente ao universo do cinema, propomos estender seu sentido. A imagem que retomaremos aqui está também em movimento por nos permitir mais de uma visada, mais de uma leitura, mais de uma apropriação. Como nos lembra Comolli (2008), “Que nous apprend la pratique du cinéma sur la question du « document » ? Qu’il n’y a pas de document sans regard”. Trata-se de uma passagem em que, interpolado por Hugo Denizart, Bispo do Rosário fala sobre como foi parar na Colônia Juliano Moreira e, com isso, revela, segundo nossa interpretação, a função desta instituição psiquiátrica na concepção de sua obra5. O diálogo na cena se desdobra da seguinte maneira: Hugo Denizart - Como é que você veio parar aqui nesse hospital? Bispo do Rosário - No dia 22 de dezembro, eu desci6 lá em São Clemente, em Botafogo, desci no fundo de uma casa dessas, onde eu fui conhecido pela família. No dia seguinte, depois, eu fui, me apresentei no Mosteiro de São Bento, dia 24, e dia 24 eu vim aqui pra Praia Vermelha7, mandado pelos frades. Hugo Denizart - Pelos frades? Bispo do Rosário – É, que reconheceram a mim, onde eu disse: “Eu vim julgar os vivos e os mortos”. Eles perceberam e mandaram eu vim(sic) pro hospício, e antes mesmo, na Ilha do Governador, eu vi um evangélico lá na frente da capela, já dizia que eu vinha pra hospício, a fim de julgar os vivos e os mortos… é só pra quem enxerga e conhece...1 Hugo Denizart - Hã… hã… Bispo do Rosário - ... a pessoa que é um médico, por exemplo, que é psiquiatria. Eu quando cheguei na Praia Vermelha, com dois dias, fui chamado à junta médica, o Dr. Odilon Galotti e os demais médicos, a fim de me interrogarem e todos eles perceberam que a mim me representava a sua santidade… e a sua santidade permitia a casa forte e a casa forte pertence a Cristo, e assim eu passei a residir a casa forte a fim de fazer as miniaturas porque eles perceberam a minha visão. O depoimento de Bispo do Rosário está em off, e suas obras são utilizadas como imagens de cobertura. As obras parecem “roubar a cena”, ficando a fala do artista em segundo plano. Além disso, os problemas de dicção de Bispo do Rosário, provavelmente pela falta de uma prótese dentária, dificultam a compreensão do que é dito, e sua fala não está legendada. O papel da instituição na construção da obra é referida por Bispo do Rosário também em outra passagem do filme. Nesta segunda referência, a imagem do próprio Bispo do Rosário, sentado rodeado por seus trabalhos, vestindo aquela que é considerada sua obra prima, O manto, nos distrai do seu importante discurso. É, novamente, sua obra que nos fascina. É a oportunidade de ver seus objetos, tanto tempo recolhidos na clausura do hospício, que captura nosso olhar. Essa opção de montagem remete a uma postura de resistência da arte e do Bispo do Rosário contra o discurso da psiquiatria. No entanto, qual a natureza dessa resistência? A que ele resiste? Essa interpretação do sentido do documentário nos é facultada por uma análise que inclui o momento de abertura política do país, além de depoimentos inéditos deste diretor sobre o filme8. Ou seja, é possível esclarecer melhor o que estava em jogo naquelas imagens a partir de seu contexto. É também o mergulho no próprio filme que nos permite tal interpretação, pois como assinala Comolli (2008), o olhar que sustenta a documentação faz parte da própria documentação, nos permitindo inferir seu sentido. E esse sentido é, sem dúvida, fundamental, devido à intenção social, política e, sobretudo, humanizadora do documentário. Mas essa interpretação aborda o sentido apenas no nível da significação ou do simbólico, na conotação dada aos termos por Barthes (1990). O autor designa esse nível como sentido óbvio, aquele que vem à frente, que vem ao nosso encontro, tratando-se de uma evidência fechada. Entretanto, Barthes nos indica um terceiro sentido. Quanto ao outro sentido, o terceiro, aquele que vem “a mais”, como um suplemento que a minha intelecção não consegue absorver bem, ao mesmo tempo teimoso e fugidio, liso e esquivo, proponho chamar-lhe o sentido obtuso. Esta palavra vem-me facilmente à cabeça e, maravilha, ao desdobrar a sua etimologia, comunica já uma teoria do sentido suplementar; obtusus quer dizer: que é rombo... o terceiro sentido, também ele, me parece maior que a perpendicular pura, direta, cortante, legal, da narrativa: parece-me que abre um campo do sentido totalmente, isto é, infinitamente... (p. 45) Porém, o sentido no nível da significação, aquilo que surge como evidência fechada, é também o que abre o caminho para outro sentido. Nas tentativas de construção de sentidos fechados há sempre algo que escapa, como fora do sentido, um furo que permitirá, em outro tempo, a irrupção de um sentido obtuso. Comolli (2008) aborda a questão do fora de campo da imagem e fora do campo temporal, que também nos auxilia nessa problematização. Para esse autor, uma imagem tem a característica de ser dinâmica em função do tempo e de sua passagem. Este tempo constrói, desconstrói e reconstrói a imagem, nos fazendo ver aquilo que não estava ali, mas que passa a marcar sua presença justamente por ter estado ausente. O fora do campo temporal confere à imagem uma indeterminação, tratada por Comolli como interioridade, uma dinâmica própria articulada pelo tempo e pelo olhar em busca de outros sentidos. Passados 28 anos da “descoberta” de Bispo do Rosário, é outro sentido, seu sentido obtuso, que nos interessa na cena que escolhemos analisar, por nos oferecer outra possibilidade de reflexão sobre este artista e sua obra. Bispo do Rosário tornou-se, para muitos, um símbolo de resistência ao discurso e à pratica psiquiátrica excludente. Mas essa formulação, que à primeira vista parece bastante simples de ser concluída, para nós deve ser tomada em sua complexidade.