O Advogado do Terror - Reliquias em DVDs
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O Advogado do Terror

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Os argumentos cínicos, a retórica estridente, a empáfia e o descaramento audaz com que alguns profissionais se entregam apaixonadamente à defesa de criminosos confessos e, às vezes, à justificação de seus atos atrozes, sempre calou fundo nas pessoas de espírito mais elevado. Aos olhos indignados desse público, a advocacia criminal parece condenada à eterna sina de flutuar no horizonte de uma meditativa ausência de senso moral e à dilacerante e invencível atração por tudo aquilo que degrade a condição humana. Uma impenitente simpatia pelo mal. É nessa sutil e diabólica linha divisória entre amoralidade e tecnicismo jurídico que habilmente se equilibra Jacques Vergès, figura excêntrica e controversa da advocacia francesa, cuja atuação destemida lhe rendeu fama, fortuna e imenso destaque nos corredores dos foros europeus. Filho de pai francês e mãe vietnamita, nascido em 1925 na Tailândia, em plena opressão colonial, esse esquerdista de insuspeitos hábitos burgueses de senhor parisiense ecoa com orgulho pelas paredes o apelido de advogado do diabo, granjeado ao longo de décadas de atuação profissional em defesa de terroristas, psicopatas, ex-ditadores de países do 3º Mundo e celebridades desviadas. Da extrema esquerda à extrema direita, com rápido trânsito pelos delinquentes apolíticos, a clientela de Vergès compõe um invejável circo dos horrores. O Advogado do Terror Em 2007, o diretor alemão Barbet Schröder “ousou” uma cineobiografia sobre a tortuosa trajetória de Vergès. Entremeando minuciosa pesquisa histórica, depoimentos variados e uma longa, tensa e estilosa entrevista com o próprio Vergès – que não se furtou a posar para a irônica foto de “capa” do filme -, o resultado é mais do que arrebatador. A começar pela cena de abertura: à sinistra pilha de crânios e ossos humanos, ilustrada por um bucólico silêncio pleno de significação, segue-se a negativa enfática de Vergès à constatação universal do genocídio patrocinado pelo Khmer Vermelho no Camboja: a carnificina seria atribuível não apenas e principalmente às execuções, às torturas e à brutalidade do governo comunista, mas às duras sanções econômicas impostas pelos países ocidentais. É certo que o documentário não arrisca uma resposta à ambiguidade que seu personagem principal encerra: afinal, o que move um homem que, a pretexto de lutar pela Justiça, se torna amigo da pior espécie de escória? Dinheiro, paixão, ódio ao colonialismo em todas as suas versões, vingança pela desgostosa origem mestiça, desejo recalcado de tornar-se terrorista? Mas dá algumas dicas, pela voz dos entrevistados. Das recensões que encontrei sobre o filme, a mais expressiva e contundente é a da jornalista de VEJA, Isabela Boscov. Numa visão leiga, e não menos lúcida e equilibrada, Boscov produziu um sólido libelo contra o tipo de retórica empregado por Vergès. O advogado de monstros A trajetória de Jacques Vergès, que virou defensor de alguns dos piores criminosos da história moderna, com a desculpa do que sofreu sob o colonialismo Isabela Boscov Em 1957, dois anos depois de se formar, o advogado Jacques Vergès começou a carreira de maneira instigante: defendendo argelinos que o governo francês acusava de assassinato. Na dramática batalha pela independência da Argélia (a qual viria a se concretizar em 3 de julho de 1962), guerrilheiros da Frente de Libertação Nacional plantavam bombas em lugares públicos freqüentados por civis franceses. A tática, terrível e sangrenta, era uma resposta à maneira brutal com que a França colonialista havia tirado a Argélia dos argelinos. Durante o longo processo, Vergès se valeu de um tipo de defesa até hoje em voga entre réus de tribunais internacionais, como o ditador iraquiano Saddam Hussein: recusar-se a reconhecer o mérito dos procedimentos e a autoridade do juiz e do júri, devolvendo contra eles as acusações de abuso e assassinato. Conseguiu, assim, mobilizar a opinião pública em todo o mundo e, por fim, obter a anistia para seus clientes – entre os quais a bela Djamila Bouhired, símbolo do movimento argelino, com quem se casou. Em alguns anos, porém, Vergès se transformou em uma criatura assustadora: um ideólogo do terrorismo e do genocídio, que voluntariamente procura seus clientes entre figuras cruéis e se associa, em amizade ou interesse, a alguns dos nomes mais infames do século XX. Como Pol Pot, que à frente do Khmer Vermelho ordenou o assassinato de milhões no Camboja. Ou o palestino Wadi Haddad, um dos inventores do terrorismo internacionalizado. Essa trajetória sinistra é o tema do documentário O Advogado do Terror (L’Avocat de la Terreur, França, 2007), que estréia nesta sexta-feira em São Paulo e no Rio de Janeiro. Dirigido pelo cineasta de origem alemã Barbet Schroeder, que em 1974 fez trabalho de calibre semelhante sobre o ditador ugandense Idi Amin Dada, o filme colhe testemunhos de dezenas de participantes dessa história. Mas o astro, claro, é o próprio Jacques Vergès, que expõe seus feitos, canta suas glórias e delineia seu “pensamento” em falas de vaidade triunfante. O retrato que emerge desse mosaico é enregelante. Vergès sintetiza em sua própria pessoa um desdobramento nefasto da segunda metade do século XX – a metamorfose da luta anticolonialista no terrorismo indefensável. Filho de um francês e de uma vietnamita, Vergès diz guardar lembranças amargas de desprezo e discriminação. Que esse seja, então, o ovo; já a serpente que ele produziu é um homem que promoveu ativamente ligações entre palestinos e nazistas em torno do anti-semitismo. Seus clientes mais célebres incluem o francês Roger Garaudy, negacionista do holocausto, e o alemão Klaus Barbie, oficial nazista que atuou com sadismo incomum na França ocupada. Em nome do antiimperialismo e do anticapitalismo, além disso, Vergès corteja abertamente genocidas. Defendeu um punhado de ditadores africanos da pior estirpe e ofereceu-se para amparar legalmente Saddam Hussein e o sérvio Slobodan Milosevic. Hoje octogenário, defende Khieu Samphan, que foi braço-direito de Pol Pot. Não menos tenebrosa é a maneira como Vergès desfigura um dos esteios da democracia – o direito de todo réu, por mais abominável que seja, à melhor defesa possível. Vergès não seleciona seus clientes entre nomes que a maioria dos defensores considera indefensáveis por lealdade a esse princípio, cujas origens remontam à Antiguidade clássica. Sua meta é exatamente ridicularizá-lo. Em vez de buscar a condenação mais justa ou ganhar tempo para obter a prescrição da pena, ele justifica e acolhe tanto o crime como o criminoso. No julgamento de Klaus Barbie, por exemplo, pontificou que a França não podia julgá-lo, já que seus crimes colonialistas seriam piores que os do réu. Essas relativizações destrutivas são o efeito que Vergès procura, conforme demonstrado em uma de suas declarações no documentário: “Se eu defenderia Hitler? Ora, eu defenderia até George W. Bush, com a condição de que ele se declarasse culpado”. O estilo gongórico e a argumentação tresloucadamente ideológica nada têm a ver com a prática do direito, diz o jurista Saulo Ramos, mas consistem apenas em “montar pândegas forenses, em que Vergès se projeta sob a fama de seus clientes para escandalizar os meios de comunicação”. Vergès, enfim, é a acepção literal de um “advogado do diabo” – aquele que se candidataria a defender o próprio, por gosto e convicção. A estratégia de Vergès encontra paralelo e correspondência parcial com a caricata e retorcida versão de garantismo que tanta força vem ganhando em nossa tropicália – o famigerado garantismo à brasileira. Com efeito, cada vez mais defensores de criminosos ilustres substituem a argumentação jurídica pelo discurso com viés político, no esforço de deslocar o debate do campo da verdade para o da legitimidade material do poder punitivo confiado ao Estado. Não se põe em dúvida a veracidade das acusações, mas a isenção de quem as formula; não se questiona o acerto da condenação, mas a não-observância de minúsculas formalidades procedimentais. A argumentação ideologizada tende a mudar o foco e fazer recuar a questão da culpa para o segundo plano: fundamental passa a ser o meticuloso e obsessivo cumprimento da liturgia processual – em seus pormenores mais microscópicos-, que perde a condição subalterna de ferramenta para a busca da verdade (material) para tornar-se a verdade em si mesma – uma verdade (formal ou ficcional). Também há diferenças. Vergès gesticula e ataca, mas , em sua franqueza acachapante, não nega os crimes de seus clientes, nem se apresenta como bastião das liberdades individuais. Seus discípulos tupiniquins não compartilham a sinceridade do mestre. Além disso, na França a retórica de Vergè tem alcance limitado: não limpa os pés no tapete dos Tribunais.

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