Menos que nada” é um longa metragem ficcional, realizado pela Prana Filmes, de Porto Alegre, com direção de Carlos Gerbase. Em janeiro de 2010, o projeto foi contemplado em concurso promovido pela Petrobrás para filmes que utilizam mídias digitais, o que garantiu os recursos necessários para a sua realização. O suporte de realização é o vídeo da alta definição (HD), e a exibição em todo o País, no segundo semestre de 2011, acontecerá nas salas de cinema, através do sistema RAIN, com lançamento simultâneo em DVD, televisão e internet. A execução do projeto permitirá a continuidade da experiência da Casa de Cinema de Porto Alegre com formas alternativas de produção, distribuição e exibição de obras de baixo orçamento, iniciada com o longa “3 Efes”, em dezembro de 2007. A trama de “Menos que nada” gira em torno do tratamento de um doente mental internado há dez anos num hospital psiquiátrico, onde foi esquecido pela família, pelos amigos e pela sociedade. Esta temática, de alcance universal, proporcionará uma reflexão sobre a doença mental, que permanece como uma espécie de continente inexplorado e quase desconhecido, embora atinja parcela significativa da população brasileira. A inspiração “Menos que nada” foi inspirado pelo conto “O Diário de Redegonda”, do médico e escritor austríaco Arhur Schnitzler (1862-1931). Trata-se de um texto curto (oito páginas), mas de grande densidade dramática, em que Schnitzler conta a história de um escriturário que se apaixona perdidamente pela esposa de um militar e, sem qualquer possibilidade real de aproximar-se dela, constrói um universo imaginário para viver seu amor. Embora a trama original se passe na Viena do final do século 19, o conflito psicológico retratado é universal e atemporal, permitindo uma adaptação que dialoga com os espectadores cinematográficos contemporâneos. O estilo literário peculiar de Schnitzler, que mescla realismo e sonho, ação e devaneio, foi mantido em sua essência desde os primeiros tratamentos. O filme a ser realizado pode ser definido como um drama psicológico, embora também tenha alguns traços de suspense e erotismo. Schnitzler era um arguto observador do comportamento humano – em suas glórias e em suas misérias – e a adaptação procurou manter esse caráter analítico da sociedade, que pode ser inferido a partir dos dramas individuais. Para isso, foi fundamental colocar a trama num contexto brasileiro e mais próximo ao espectador atual. Em vez de Viena, Porto Alegre. Em vez de final do século 19, início do 21. O personagem principal, no original um escriturário, foi transformado num arqueólogo de pouca ambição, quase um burocrata, que trabalha com a liberação de obras, redigindo e assinando alvarás. Ele vive com o pai (um policial aposentado), num pequeno apartamento e praticamente não tem vida social. Já a mulher por quem se apaixona, que no conto é a esposa de um militar, no filme é uma paleontóloga carioca de destaque no meio universitário, que vem para um congresso em Porto Alegre. Dante apaixona-se por esta mulher, para ele inatingível, e a partir daí sua vida muda inteiramente. No desenvolvimento da última versão do roteiro, teve papel decisivo a leitura – indicada pelo psiquiatra Celso Gutfreind – de um ensaio de Freud, “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen”, em que um conto é analisado em profundidade com ferramentas psicanalíticas. Há um detalhe surpreendente nesse ensaio: o personagem principal da ficção de Jensen é um arqueólogo, a mesma profissão de Dante, o anti-herói de “Menos que nada”. Coincidência? Talvez não. A investigação psicanalítica pode ser encarada como uma escavação que parte da superfície visível do ser humano e vai penetrando em camadas cada vez mais profundas da sua psique. Esta metáfora já estava colocada – de forma intuitiva – nas versões anteriores do roteiro. Nosso trabalho foi incorporar ao roteiro novas camadas de significados, sem medo de pensar a trama numa perspectiva mais psicológica que nas versões anteriores. Evitamos o jargão e buscamos aproveitar o que o discurso freudiano tem de mais dramático e facilmente assimilável pelo cidadão comum. Doença mental Ao abordar a doença mental – especialmente em suas manifestações mais severas, como a esquizofrenia e a psicose – “Menos que nada” trará para a pauta de discussões um tema importante para a saúde pública no Brasil. A falência do sistema manicomial brasileiro, construído no século 19, é bem evidente, mas a sua substituição por uma rede descentralizada de atendimentos é mais um desejo que um fato. Há uma grande carência por leitos para os doentes mentais, o que torna impossível simplesmente desativar os grandes hospitais psiquiátricos. O personagem principal de “Menos que nada” está internado numa destas instituições, e a sua realidade é compartilhada por milhares de brasileiros. O abandono destes doentes por suas famílias é também uma triste realidade. Sem serviços especializados para receber – em regime de hospital-dia ou ambulatorial – seres que não conseguem viver normalmente em seu meio social, a permanência, por anos a fio, solitários, num hospital psiquiátrico, ainda é um destino possível em pleno século 21. Em setembro de 2008, segundo o jornal Estado de São Paulo, o Brasil tinha 1.202 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) – o principal recurso terapêutico no tratamento de doenças mentais graves – o que representa uma cobertura de 0,51 unidade por 100 mil habitantes, pouco mais de 50% do necessário. Já a relação de leitos destinados a pacientes psiquiátricos em hospitais-gerais no país é de apenas 0,25 por mil habitantes, quando deveria ser de, no mínimo, 0,45, segundo definições da Política Nacional de Saúde Mental. A consequência desses números é perversa: ou simplesmente ficam sem tratamento, ou os doentes não escapam do antigo sistema manicomial. “Menos que nada” conta a história de um destes doentes. Há muitos anos internado num hospital psiquiátrico, em Porto Alegre, ele é considerado um “caso perdido”até que uma jovem médica decide tratar dele e estudá-lo. Ao dramatizar esse processo, o filme mostra como uma pessoa aparentemente alienada da realidade pode ser conduzida a um outro patamar, mais digno e mais humano, mesmo que isso não signifique propriamente uma “cura”. Misto de investigação médico-científica e processo de reconstituição da história pregressa do paciente, o trabalho da psiquiatra é uma lenta aproximação do que resta de humano num ser que já se “coisificara” no cotidiano do hospital. A trama de “Menos que nada” parte de fatos já bem conhecidos da psicose – em sua maioria desvendados por Freud ainda no começo do século 20 – mas que ainda são misteriosos para o cidadão comum. Sem didatismos, e sem trazer dogmas para o mais subjetivo dos temas – “Menos que nada” pretende lançar alguma luz para um problema que a sociedade tem deixado nas sombras. Gerbase: “Por que fazer Menos que Nada?” O tema da imaginação está bem presente em meus últimos filmes. Em “Tolerância” (2000). um editor de fotografias usava tecnologias digitais para alterar as imagens, adequando-as ao gosto de público (em seu trabalho profissional) e às suas próprias fantasias (ao navegar na internet com o nick “Ivanhoé” e criar imagens falsas de uma garota por quem se apaixonou). A sua imaginação acaba trazendo problemas bem concretos ao seu casamento. Em “Sal de Prata” (2005), uma economista bem sucedida tentava descobrir, em roteiros de filmes encontrados no computador do namorado recentemente falecido, conexões entre a ficção e a realidade de suas vidas. Incapaz de desvelar esta relação, ela própria começa a imaginar um passado, baseado em seus maiores temores. Em “3 Efes”, a imaginação, chamada agora de “fasma”, é explicitamente citada como um dos aspectos fundamentais da existência humana, ao lado da fome e do sexo. Uma jovem estudante é obrigada a prostituir-se para sustentar o pai e o irmão, descobrindo que, antes de “ser” uma garota de programa ela precisa imaginar-se como tal. Ou seja, precisa descobrir uma linguagem que componha esse novo personagem. Minha motivação principal em “Menos que nada” é dar mais um passo nesse conjunto de reflexões sobre a imaginação humana. Pretendo que esse passo ultrapasse os limites da imaginação dita normal e penetre no campo das imaginações ditas patológicas. Dante, o personagem principal de “Menos que nada”, perdeu a noção da realidade, e, em vez de usar a linguagem para construir um mundo mental capaz de dar significados à existência, é “usado” pela linguagem, transformando-se num ente de significados incompreensíveis. A psiquiatria e a psicanálise criaram um grande conjunto de denominações para as patologias mentais – sendo a esquizofrenia e a psicose as que mais se aproximam do estado de Dante – mas pretendo mostrar que essas classificações são inúteis se não houver, na base do tratamento, o reconhecimento do doente como um ser humano completo, em suas dimensões físicas e psíquicas. Creio que foi apenas no último tratamento do roteiro, em que foram introduzidos novos personagens e uma nova dimensão temporal, que este fato ficou mais claramente exposto. Paula, a psiquiatra que assume o tratamento de Dante, funciona como um detetive. Ela está interessada em encontrar as origens do desequilíbrio mental do seu paciente, em vez de simplesmente classificá-lo como “crônico” ou “incurável”. A noção de que a esquizofrenia, em suas formas mais severas, não tem perspectiva de cura, não significa que o doente perdeu sua condição humana e está condenado a uma existência sem qualquer comunicação com o outro e com a sociedade. Freud já anunciava que a psicanálise, em muitos casos, tenta transformar um sofrimento insuportável em infelicidade comum. É assim que se comporta a psiquiatra Paula em relação a Dante. Outra noção importante é de que o processo de degeneração mental nunca está totalmente desligado das relações familiares e sociais. As entrevistas feitas pela médica permitem que ela desvende, pelo menos parcialmente, as razões da primeira grande crise de Dante, e, a partir daí, talvez torne possível imaginar uma existência mais humana para um homem que já tinha se transformado em “coisa”. Realizar “Menos que nada” será, para mim, um aprofundamento e uma radicalização de idéias que já vinham sendo desenvolvidas em meus filmes: a imaginação como elemento constituinte (e formador) da existência humana; as dificuldades que todos temos de relacionar o mundo imaginado com alguns de nossos instintos mais básicos e que nos aproximam muito dos animais, em especial as pulsões sexuais; os paradoxos daí resultantes, que estabelecem uma tensão permanente, e às vezes insuportável, entre a racionalidade e a animalidade; o cinema como a mais poderosa máquina de criar imaginários, pois é capaz de representar mundos com grande verossimilhança, e mesmo assim plenamente estéticos e arbitrários.