Após 40 anos preso, Zé do Caixão (José Mojica Marins) enfim é libertado. De volta às ruas, ele está decidido a cumprir sua missão: encontrar uma mulher que possa gerar seu filho perfeito. Caminhando pela cidade de São Paulo ele enfrenta leis não naturais e crendices populares, deixando um rastro de sangue por onde passa.
CRITICA
A tortura para ele não é uma punição, mas uma benção. Sobreviver a ela significa enxergar com dignidade a beleza de estar vivo - afinal, não existe nada depois da morte.
Não estamos falando de Jigsaw e Jogos Mortais, como pode parecer, mas de Zé do Caixão e Encarnação do Demônio, o fecho da trilogia do mais conhecido personagem do escasso gênero do terror nacional, iniciada em 1963 com À Meia-noite Levarei sua Alma e emendada em 1966 com Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver. Se Jigsaw é o símbolo do que se convencionou hoje chamar torture porn, Zé do Caixão é seu avô safado.
ZÉ DO CAIXÃO
ZÉ DO CAIXÃO
ZÉ DO CAIXÃO
O roteiro co-escrito por Denisson Ramalho (do curta de horror Amor Só de Mãe, que escandalizou festivais Brasil afora) e dirigido por José Mojica Marins inclui todos os desaforos aos bons costumes que um orçamento de 2 milhões de reais - valor que em meio século de carreira Mojica jamais havia levantado - consegue pagar. Tem cabeça afundada em tonel de baratas, mulher que come carne da própria nádega, outra que sai de dentro de um porco e até ratazana enfiada na vagina. Gastaram com carcaças e animais vivos todo o dinheiro que economizaram nos figurinos. (Ainda assim as poucas pessoas com roupas vestem Herchcovitch.)
A cena de O Albergue 2 em que a mulher nua se banha no sangue da vítima, tão falada ano passado, parece uma provocação pueril se comparada com a liberdade com que Mojica filma sexo e violência. O que Encarnação do Demônio tem de mais extremo, porém, não é nada gráfico, mas sua ideologia: a ridicularização das religiões organizadas (como diz Zé do Caixão, "Deus não foi convidado para a festa", e o padre que critica a tortura mas se auto-flagela só pode ser um hipócrita), da sociedade organizada (Zé do Caixão deixa a prisão depois de 40 anos caçoando do sistema carcerário) e o uso de drogas (o coveiro sempre fuma um cachimbo antes de ter suas alucinações).
A roleta russa antes que se iniciem os "festejos" é emblemática: um jogo de entrega e morte para celebrar a liberdade e a vida. Em sua busca pela mulher perfeita, que lhe dará o filho que ele tanto quer - afinal, "só o sangue é eterno" -, Zé do Caixão é antes de tudo um ateu pragmático. Os filmes de terror que estamos acostumados a ver no circuito trabalham com a aceitação do oculto (leva-se um remake de suspense oriental inteiro para explicar de onde saem as almas penadas), e o oculto é a primeira coisa que Encarnação do Demônio renega.
Só essa questão do pragmatismo já serve para livrar o filme daquelas explicações sem fim que amarram os filmes hollywoodianos. Não há nada para se explicar no filme de Mojica, há apenas a vivência, o momento. Nesse ponto, é injusto dizer que seu filme se filia ao torture porn de um Eli Roth. Todo instante de tortura de Encarnação do Demônio é materialização da ideologia do coveiro. Em um Jogos Mortais, por exemplo, a câmera não mostra Jigsaw assistindo às torturas. Já aqui a câmera o tempo inteiro fecha o close-up nos olhos de Mojica, olhos pesados e brilhantes de quem tem uma única crença, a crença na experiência carnal, individual e desmistificada.
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- Encarnação do Demônio R$27,99